sábado, 29 de janeiro de 2011

Num Pingar de Chuva




Foi como se ela estivesse acordando de um longo estado de coma, de repente tudo lhe parecia tão nítido. Ela - Clara Bittencourt, 35 anos recém completos, casada com um “partidão”, Ricardo Bittencourt, um dos maiores empresários da cidadezinha de Orizona um quarentão enxuto, com olhos de mel e um corpo malhado, de maneiras refinadas mas um tanto machista - esfregava os olhos tentando se livrar da sensação que tanto escondera, da qual tanto fugira esses anos todos, a sensação de que sua vida fora um erro, pelo menos de uns dez anos para cá.

È como se ela estivesse dormido um sono letárgico todo esse tempo, cumprindo a rotina de cada dia pensando que de fato estava vivendo, enquanto o que na verdade acontecia é que executava “tarefas” para as quais tinha sido programada, tal qual um robô ou um cachorrinho adestrado que faz o que lhe mandam fazer.

Ali parada debaixo da marquise daquele sebo, que exalava o doce cheiro de velharia, e ficava de frente sua antiga escola de teatro, que tanto prazer havia lhe dado, se escondendo da chuva torrencial que desatou a cair quando estava voltando da capital para o interiorzinho, ela finalmente se lembrara do que tinha sido um dia, seus sonhos o seu eu. Era como se cada gota de chuva fosse um lágrima derramada pelo que Clara poderia ter sido, mas desistiu de ser. E com a vergonha de seus pensamentos, com a vergonha de se queixar pela boa vida que conquistara, pensava:

- Meu Deus, o que eu fiz de mim, eu queria tanta coisa, eu lutava por tanto, eu tinha sonhos, eu queria aventuras, viagens, a felicidade, e agora sou isso, a bem-sucedida e infeliz Clara Bittencourt, vivendo sua vida no automático, ou melhor não vivendo. Mas eu não posso reclamar tenho um marido que me ama, futuramente talvez filhos, eu tenho um emprego bom,que me paga um salário grande,uma casa. Oh Deus mas isso é justamente o que eu nunca quis,ser comum,a mediocridade, vender minha alma por papel moeda.

Perplexa,é como ela estava. Perplexa e insatisfeita,logo agora,ou finalmente agora, insatisfeita.

Clara dos anjos, que nem no livro do Lima Barreto, costumava dizer o pessoal do teatro, sonhava desde pequena em ser artista, sair pelo mundo fazendo as pessoas sonharem, era tudo o que queria. Ainda se lembrava com saudades quando costumava de deitar bem ali, na grama daquela pracinha, com seu grande amor o Guga,morto aos 26 anos de acidente.

Como era bom ficar sentindo as gotas de chuva pingando em seus rostos, e o cheiro da terra molhada, fazendo planos, de viagens, de sonhos que seriam compartilhados e fazendo juramentos de amor livre.

Deus o que ela fizera de si mesma.

Como deixou a dor da perda de seu anjo, que era o que ele significava, lhe corroer tanto a ponto de suicidar-se estando viva, a ponto de não se reconhecer, não saber mais quem é, era ou foi. Porque foi isso.

Ela se perdeu, estando sã ela se perdeu,estando viva ela morreu. Pois alguém não pode viver se não se reconhece em seu próprio corpo. E Clara há muito não sonhava.

Desde que Guga se foi. Ela voltou para a casa dos pais, que nunca aceitaram uma filha com ânsias de artistas.

Não.

- Filha minha tem que ter um emprego decente, casar, ter filhos. E não ficar brincando de atriz com um morto de fome qualquer.

Ela cedeu. A sua fortaleza, as suas convicções, ruíram todas. Morreram. E com ela, Clara também.

Aceitou casar com o primeiro que lhe cortejou, o primeiro que agradou a seu pai, aristocrata, falido, cheio de amantes, que nunca deu um carinho a mulher ou as filhas.

E assim quebrou seu primeiro mandamento, a primeira pilastra que lhe sustentara: nunca pedir permissão ao estado para se unir com alguém e nunca se envolver sem amor. A partir daí destruir tudo que lhe fazia ser Clara, e não outro alguém foi fácil.

Foi para o interior, arrumou um emprego “decente”, com folha de ponto, senta, escreve, telefona, senta, escreve, telefona, senta, escreve, rotina, automatismo,perda da capacidade de refletir sobre si, perda da capacidade de viver.

Ela foi jogando mais e mais areia sobre o caixão. Se enterrando. Morrendo um pouco a cada dia.

Até que a possibilidade de ter um filho tirou um pouco da terra que lhe havia submergido.

- Um filho! Uma possibilidade de mudança! Ou a mesmice ainda pior!

Clara fez os exames e veio para a capital, com a desculpa de ver o pai. Mas na verdade um pequena chama começava a acender ali. A mulher precisava voltar ouvir os ecos do seu passado, não mais como um ruído, mas na forma de uma doce melodia.

O telefone toca e a acorda de suas elucubrações. Era Ricardo

- Amor, sinto muito, não foi dessa vez, peguei os exames e você não está grávida. Sei que você queria muito,mas vamos continuar tentando e.....

- Eu não vou mais voltar.

- vamos continuar tentando e...

- Você não me ouve Ricardo, eu não vou mais voltar, nunca mais, eu vou embora para sempre, eu vou recuperar o que perdi, eu vou viver novamente, eu não quero mais brincar de dona-de-casa-feliz, eu cansei desse papel.a

- Clara, você está louca, você nem sabe o que esta dizendo, meu amor, volta logo eu estou te esperando e podemos comer aquela...

- NÃO, você é maravilhoso, Ricardo, disso eu nunca vou me esquecer. Mas eu nunca te amei, eu nunca gostei desse lugar, eu nunca quis ter um emprego “decente”, eu nunca quis uma vida medíocre, comum. Eu sou um pássaro, cuja as asas não podem ser cortadas. A liberdade é minha natureza. Eu quero sonhar novamente, eu quero me sentir viva.

- Clara eu acho que você está

- Obrigada por tudo

-...estressada e.

- Adeus

- volta logo e ... Clara,Clara,Clara.

domingo, 16 de janeiro de 2011

We Can Do It

Por que depois de todas as duras conquistas das mulheres nos últimos tempos muitas de nós ainda sonhamos com uma vida de dona-de-casa-pequena-burguesa-com-cinco-filhos-e-uma-casa-de-cerca-branca? Essa é a pergunta que vêm rondando minha cabeça nos últimos tempo, desde que comecei a ler A mística feminina, de Betty Friedan.

O livro nos fala justamente dessa questão, a criação de uma mística em torno do que é ser mulher baseada na figura da dona de casa jovem e que vive em função dos filhos e do marido,aliás que só existe em função desses dois elementos pois não tem nem vida e nem idéias próprias. E pasmem o livro e da década de 60, ou seja, nesta época os grandes movimentos de emancipação da mulher, desde as sufragistas até a segunda onda do feminismo, inaugurada por Simone de Beauvoir (minha guru), já havia conhecido o seu apogeu e dado o seu legado para as mulheres de então.

O que Friedan expõe nos leva a pensar porque as mulheres, ao invés de progredirem, no sentido de ter uma vida livre das amarras a ela impostas pelas sociedades patriarcais, que até hoje mantêm as suas algemas sobre o mundo, regridem a ponto de achar que qualquer coisa ligada à carreira, ao desenvolvimento intelectual apenas serve para lhes tornar masculinizadas e distantes de seu “papel feminino”. E isso hoje é tão comum quanto foi na época da autora, o que é triste de se ver.

Hoje muitas mulheres ainda continuam se casando muito cedo com homens ricos, pois assim não precisarão trabalhar e ficarão apenas responsáveis por cuidar da sua beleza.

As mulheres ainda desistem de uma possível carreira brilhante porque simplesmente isso iria atrapalhar no quesito maternidade,que é sua função. Evitam saber ou falar demais, principalmente “assunto de homens”, porque isso assusta os dito cujos, afinal não é necessário saber mais que uma receita de bolo. E assim elas tentam se apegar firmemente nessa crença de que é no lar que reside sua felicidade, porque afinal é muito mais fácil casar, se esconder nas sombras de um homem do que viver sua própria vida. Existir por meio de outro torna a dor da existência mais facilmente suportável.

Levar essa vida fútil é o que há de melhor para fugir de si mesma.

E cada vez mais nos perdemos nesse jogo em que quem ganha é somente o sexo masculino que tem em casa uma amante, uma lavadeira, uma passadeira, uma cuidadora de crianças, em tempo integral, que perde toda a sua existência e vitalidade na função a ela destinada pelos homens que controlam a sociedade. Enquanto ele, dono de si e livre se regozija tendo o mundo todo a seus pés, o mundo todo por conhecer e dominar.

Enquanto isso mais e mais mulheres são vitimas de abusos sexuais, de violência física e psicológica. E quando decidem por ter uma carreira, quando tentam conquistar seu espaço no mundo do trabalho, são massacradas por baixos salários e grandes preconceitos, somente porque não têm um pinto entre as pernas.

Por isso fico triste,com raiva, revoltada, quando percebo em muitas meninas que seu único objetivo na vida e ficar linda para que venha um príncipe encantado, rico, para levá-la para casa, para te dar um castelo. E assim ela poderá ter seus sonhos com a mobília do momento, com a mais moderna geladeira. Assim ela perde a sua essência e se torna um robô executando tarefas ditadas pelo statos quo. E isso tudo por medo de enfrentar o mundo.

Mas quando mulheres corajosas conseguem ascender a um lugar de destaque, vem logo as piadinhas clássicas de que, ou ela é lésbica ou provavelmente é uma depressiva, estranha que nunca conseguiu arrumar um namorado na vida, ou deu para alguém para chegar onde chegou.

Ah essa mentalidade patriarcal doente. Nunca conseguem ver que o mundo existe também sem a intervenção de um homem.

Sei que é difícil viver em um mundo feito para homens, como diria a música do MC5, mas eu espero que todas as mulheres descubram em si mesmas essa força avassaladora que nos faz ser quem somos, que nos fez enfrentar todas as limitações sociais e físicas que nos impuseram ao longo do anos, e que não somos nem pior nem melhor que ninguém,somos diferentes, apenas. E é muito melhor ser reconhecida pela sua própria personalidade do que por um sobrenome que nem ao menos é seu.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011


Quem são os nossos heróis?

Somos a geração perdida, em nossas "dúzias de carros reluzentes" e das nossas tecnologias super cool acabamos por nos perder. Não é o recalque de uma nostálgica idiota, eu sei o que ganhamos nessa pretensa pós-modernidade e sei que talvez isso não estaria escrito aqui se não fosse por toda essa evolução, é fato. Por outro lado estamos em desespero e decaindo, sem algo para nos guiar, e não falo aqui de uma força superior que nos mantenha sob seus pés, submissos, eu falo de algo por que lutar, de algum grau de profundidade que seja mais que alguém para seguir no twitter.
É como se perdessemos a nossa alma e vivessemos como soldadinhos de chumbo que alguém brinca e joga de um lado para o outro. Em todo canto tudo igual, nada pelo que lutar, nenhuma sinceridade, nenhuma boa conversa que não seja regada à " como é estranha a roupa daquela garota", "como ela esta gorda". Nenhuma bossa nova, nenhum Café Baudelaire e agitações culturais, literárias, cinematográficas. Não mais surge nenhuma Nouvelle Vague.
Estamos perdidos
No nosso desamor, nos nosso desafetos, na nossa ânsia de querer ser demais, de querer demais, esquecemos que as coisas simples da vida é o que temos de mais belo. Um banho de chuva, cheiro de terra molhada, a lua cheia, um céu estrelado, uma canção amada, palavras de amor ditas baixinhas no ouvido. Ao invés disso temos a nossa frieza glacial, a nossa distância abismal, o medo de aproximar de outrém, o medo de ser alguém, o medo que nos faz evitar envolver com o humano, evitar ter algo que seja realmente verdadeiro.
Amizade, amor, carinho, luta, indignação, tudo isso procuramos evitar para que no final possamos dizer, "pelo menos não sofri", mas também não vivemos, e achamos que sim.
Que vida é essa que levamos minha gente, quem são nossos heróis? o Fiuk?
É tanta deseperança e tanto não viver, tanto trocar os sonhos por dinheiro, é tanta prostituição de idéias. Eu sinto falta sim de uma ideologia, de caras-pintadas, de 68, não pela violência, e sim pelo grau de intensidade com que ebuliam as almas, com que sentimentalidade expunham as suas dores, e como eram cantadas essas dores.
E hoje o que temos, pelo que nossa alma entra em ebulição? pelo funk do momento, pela preguiça, pela nossa solidão, pelo nossa masturbação tecnológica, pelo nosso comodismo que tão bem apreciamos, e que justificamos com o simples fato de que, se não mecheu com meu carro, não mecheu comigo.
E todos os livros, e todos os Dylans, os Cashs, os Russos, os Buarques, os Jobins, e toda a fantasia, e todos os sonhos, que tinhamos, que poderiamos ter? porcas elocubrações de nostálgicos, pré-históricos, comunistas, chorões, maconheiros e mals.
Realmente, acho que nasci na época errada...



"E no fim, eu nem sei o que fazer de mim"


obs: foto do Evando Teixeira minha gente, porque ele é foda

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

CIA


Só um pouco de amor, um pouco de atenção
palavras doces baixinhas no ouvido
só um pouco desse clichê tão bem quisto
tão pouco visto
Quando sincero
Só um pouco de companhia
e um pouco menos de solidão
Sem cobranças, sem perfeição
Só banho de chuva, terra molhada, aperto de mão
risadas, conversas inúteis
Só um pouco de aceitação