Foi como se ela estivesse acordando de um longo estado de coma, de repente tudo lhe parecia tão nítido. Ela - Clara Bittencourt, 35 anos recém completos, casada com um “partidão”, Ricardo Bittencourt, um dos maiores empresários da cidadezinha de Orizona um quarentão enxuto, com olhos de mel e um corpo malhado, de maneiras refinadas mas um tanto machista - esfregava os olhos tentando se livrar da sensação que tanto escondera, da qual tanto fugira esses anos todos, a sensação de que sua vida fora um erro, pelo menos de uns dez anos para cá.
È como se ela estivesse dormido um sono letárgico todo esse tempo, cumprindo a rotina de cada dia pensando que de fato estava vivendo, enquanto o que na verdade acontecia é que executava “tarefas” para as quais tinha sido programada, tal qual um robô ou um cachorrinho adestrado que faz o que lhe mandam fazer.
Ali parada debaixo da marquise daquele sebo, que exalava o doce cheiro de velharia, e ficava de frente sua antiga escola de teatro, que tanto prazer havia lhe dado, se escondendo da chuva torrencial que desatou a cair quando estava voltando da capital para o interiorzinho, ela finalmente se lembrara do que tinha sido um dia, seus sonhos o seu eu. Era como se cada gota de chuva fosse um lágrima derramada pelo que Clara poderia ter sido, mas desistiu de ser. E com a vergonha de seus pensamentos, com a vergonha de se queixar pela boa vida que conquistara, pensava:
- Meu Deus, o que eu fiz de mim, eu queria tanta coisa, eu lutava por tanto, eu tinha sonhos, eu queria aventuras, viagens, a felicidade, e agora sou isso, a bem-sucedida e infeliz Clara Bittencourt, vivendo sua vida no automático, ou melhor não vivendo. Mas eu não posso reclamar tenho um marido que me ama, futuramente talvez filhos, eu tenho um emprego bom,que me paga um salário grande,uma casa. Oh Deus mas isso é justamente o que eu nunca quis,ser comum,a mediocridade, vender minha alma por papel moeda.
Perplexa,é como ela estava. Perplexa e insatisfeita,logo agora,ou finalmente agora, insatisfeita.
Clara dos anjos, que nem no livro do Lima Barreto, costumava dizer o pessoal do teatro, sonhava desde pequena em ser artista, sair pelo mundo fazendo as pessoas sonharem, era tudo o que queria. Ainda se lembrava com saudades quando costumava de deitar bem ali, na grama daquela pracinha, com seu grande amor o Guga,morto aos 26 anos de acidente.
Como era bom ficar sentindo as gotas de chuva pingando em seus rostos, e o cheiro da terra molhada, fazendo planos, de viagens, de sonhos que seriam compartilhados e fazendo juramentos de amor livre.
Deus o que ela fizera de si mesma.
Como deixou a dor da perda de seu anjo, que era o que ele significava, lhe corroer tanto a ponto de suicidar-se estando viva, a ponto de não se reconhecer, não saber mais quem é, era ou foi. Porque foi isso.
Ela se perdeu, estando sã ela se perdeu,estando viva ela morreu. Pois alguém não pode viver se não se reconhece em seu próprio corpo. E Clara há muito não sonhava.
Desde que Guga se foi. Ela voltou para a casa dos pais, que nunca aceitaram uma filha com ânsias de artistas.
Não.
- Filha minha tem que ter um emprego decente, casar, ter filhos. E não ficar brincando de atriz com um morto de fome qualquer.
Ela cedeu. A sua fortaleza, as suas convicções, ruíram todas. Morreram. E com ela, Clara também.
Aceitou casar com o primeiro que lhe cortejou, o primeiro que agradou a seu pai, aristocrata, falido, cheio de amantes, que nunca deu um carinho a mulher ou as filhas.
E assim quebrou seu primeiro mandamento, a primeira pilastra que lhe sustentara: nunca pedir permissão ao estado para se unir com alguém e nunca se envolver sem amor. A partir daí destruir tudo que lhe fazia ser Clara, e não outro alguém foi fácil.
Foi para o interior, arrumou um emprego “decente”, com folha de ponto, senta, escreve, telefona, senta, escreve, telefona, senta, escreve, rotina, automatismo,perda da capacidade de refletir sobre si, perda da capacidade de viver.
Ela foi jogando mais e mais areia sobre o caixão. Se enterrando. Morrendo um pouco a cada dia.
Até que a possibilidade de ter um filho tirou um pouco da terra que lhe havia submergido.
- Um filho! Uma possibilidade de mudança! Ou a mesmice ainda pior!
Clara fez os exames e veio para a capital, com a desculpa de ver o pai. Mas na verdade um pequena chama começava a acender ali. A mulher precisava voltar ouvir os ecos do seu passado, não mais como um ruído, mas na forma de uma doce melodia.
O telefone toca e a acorda de suas elucubrações. Era Ricardo
- Amor, sinto muito, não foi dessa vez, peguei os exames e você não está grávida. Sei que você queria muito,mas vamos continuar tentando e.....
- Eu não vou mais voltar.
- vamos continuar tentando e...
- Você não me ouve Ricardo, eu não vou mais voltar, nunca mais, eu vou embora para sempre, eu vou recuperar o que perdi, eu vou viver novamente, eu não quero mais brincar de dona-de-casa-feliz, eu cansei desse papel.a
- Clara, você está louca, você nem sabe o que esta dizendo, meu amor, volta logo eu estou te esperando e podemos comer aquela...
- NÃO, você é maravilhoso, Ricardo, disso eu nunca vou me esquecer. Mas eu nunca te amei, eu nunca gostei desse lugar, eu nunca quis ter um emprego “decente”, eu nunca quis uma vida medíocre, comum. Eu sou um pássaro, cuja as asas não podem ser cortadas. A liberdade é minha natureza. Eu quero sonhar novamente, eu quero me sentir viva.
- Clara eu acho que você está
- Obrigada por tudo
-...estressada e.
- Adeus
- volta logo e ... Clara,Clara,Clara.
Muito obrigada,por ter disponibilizado isso. Cara que texto lindo.daria um filme hein?
ResponderExcluiré incrível,como nos falamos dos mesmo sentimentos de formas diferentes,o que vc chama de liberdade eu chamo de auto governo,ou reinado.
E,essa necessidade de voar sempre hein?
tbm tenho uma poesia,que trata das minhas asas.
Me incomoda muito ver a quantidade de pessoas que perdem a sua coroa,e isso é o que me move,o incomodo.PARABÉNS.
hahah é verdade yasmim e que bom que seja assim não vamos nunca acostumar
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